Como é difícil pensar que alguém que luta diariamente para comprar um mínimo de alimentação para a família pode ainda ter não apenas tempo, mas sensibilidade para escrever um diário.
O cotidiano é a obra Quarto de Despejo. Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus. Esse livro publicado pela primeira vez em 1960 revela com crueza a vida diária de pessoas que se acotovelam em minúsculas habitações chamadas em São Paulo de favelas.
Um jornalista, Audálio Dantas, já falecido, que busca a favela do Canindé, em São Paulo, para ter uma história é o salto que faz a diferença. Lá conhece Carolina e descobre os diários que ela escrevia. Pronto, a narrativa estava feita. Assim, esses diários vieram a público e deram ao mundo a oportunidade única dessa voz cujo relato era o dia a dia de muitas famílias sempre consideradas como párias sociais.
Essa favela em particular era dos anos 60, hoje virou apenas história de muitos habitantes e passado para muita gente. Essa favela. Porque muitas outras cresceram ao longo de todas as épocas não apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo.
A narrativa de vida de Carolina Maria de Jesus revela aquilo que todos deveriam saber. Aquelas pessoas não eram marginais, embora alguns assim o fossem. Ser marginal não é privilégio da pobreza, bem o sabemos. Tantas décadas passadas, difícil é acreditar que o mundo -contemporâneo e informatizado- ainda estranha a miséria humana. Triste, triste mundo.
No poema de Drummond, não é "triste", é "vasto", mas mesmo assim, acrescentei ao seu texto: "se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução". Pois é, Roseli. A narrativa em Quarto de Despejo é, infelizmente, atemporal. Contemporânea. Triste realidade, acentuada em tempos pandêmicos.