Este final de 2022 tem em ‘transição’ uma palavra-chave. Difícil de entender. Complicada para exercer posição. Transitio, transire, trans. Que o latim nos ajude a explicar o termo. ‘Passagem’ explicita melhor porque indica um nascer para que alguma outra coisa seja vencida. Política é também o mistério psíquico do termo que invoca a palavra ‘superação’. Como sempre, buscar a poesia ajuda muito mais a entender tudo neste mundo. Não só a poesia, mas seres pensantes que se debruçaram sobre algum tema. Camões já dizia que ‘mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’. O caro Freud também insistiu em que nossos corpos passam por transição, algo assim como para um real em relação ao que tomamos como imaginário. Que tantos corpos ‘trans’ a apontem é fato. Tiram-se órgãos. Omitem-se órgãos. Carolina de Jesus a sentiu na pele. A transição da palavra fome para a dor que ela causa nos corpos. Clarice Lispector nos mostra a epifania que se dá à Macabéa daquela que, longe de ser fatal, é a pulsão de morte que a imortaliza. São curiosas as transições. De tudo, a filosofia de Guimarães Rosa, meu eterno amado poeta, é a que mais fundo cala: ‘travessia’. As margens desistem para o mistério de estar entre elas dentro do rio, navegando. Sim, ‘viver é perigoso, carece de coragem’. Encanta-me pela etimologia de meu nome Roseli (que minha avó materna queria Rose semelhante à Rosa, nome dela) para que veja em Drummond a flor, aquela ‘Rosa do Povo’. Que lindeza de obra. Essa flor submerge do asfalto porque insiste. Assim é que ‘transição’ é tão somente uma mudança de estado. Ou tão somente de aplicativos de direção. Em se tratando de direção, posso somar oxímoros em minha vida. Perco-me mesmo com os waze ou maps. Insisto na calmaria do lugar comum. Vivo infinita presença de anos que se perpetuam em um mesmo lugar. Na mesma intensidade, busco o novo com tanta garra que não me importam as perdas que isso possa ocasionar. Cegamente persigo o poema oswaldiano em suas palavras: ‘aprendi com meu filho de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que nunca vi’. Salto longe e arriscadamente quando vejo a mudança de mim se aproximando. Vou e procuro não voltar o olhar a tristezas. Será que fiz o melhor que pude naquele momento? Não, não! Fiz sempre, sempre, sempre. Errei? Não tenho a menor dúvida de que sim, errei. Errei muito. Sigo um certo mantra vindo de uma grande escritora, Martha Medeiros: ‘Sou uma mulher madura que às vezes anda de balanço. Sou uma criança insegura que às vezes usa salto alto. Sou uma mulher que balança, sou uma criança que atura’. O que espero jamais ter cometido são injustiças. Se as cometi, o inconsciente (esse cara que nos revela) pregou-me um chiste. E por elas peço perdão porque na letra de Mário Lago me apego, ‘perdão foi feito pra gente pedir’. E se algum dia me perguntarem: - Por que se aposentará? De que valeram tantos estudos e tantas obras para cuidar da casa, de netos, de cães, de plantas? Quem se aposenta? Ah, espero que não me perguntem, assim espero que também não me perguntem sobre o pouco e raro ‘vil metal’ de Belchior que espera alguém na aposentadoria. A resposta será dada ríspida: deixo apenas um aposento. Largo apenas uma pose. Que, de fato, nunca tive. Ah, que prazer sentir com Adélia Prado, a mineira que sabe das coisas: ‘Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou’. E continuo meu trabalho, porque escrever é também o ofício das lindezas. Sou um ser simbólico que segue pela linguagem. Rezo pela cartilha de Raul Seixas que se dizia ‘pacifista que trabalha para um mundo melhor’. Trabalho com a linguagem, dela (como pose não há) não me aposento. Amizades? Nunca as deixo. Elas, se verdadeiras, comigo seguem. Inimigos? Também nunca os deixo. São o esteio para que vejamos o mundo como é. Nem tudo é bom, nem tudo é o mal. Essa dicotomia não me atrai. O que existe, repito, é ‘travessia’ rosiana. Acompanho, que falta de humildade a minha essa comparação, aqueles como Milton Nascimento que saem da grande cena para estarem, porque sempre estamos, em muitas cenas. Mas, como Cecília Meireles, continuo cantando, porque ‘o canto existe’.
E já me delongando para o olhar cansado do leitor, volto ao segundo tema do texto para além da ‘transição’. Boas Festas é o meu desejo a vocês. Passemos de 2022 para 2023 com a certeza de que a pandemia foi difícil. A retomada, no entanto, caminha a passos lentos, porque não é possível esquecer daqueles queridos e queridas que partiram. Não é possível deixar de lado o que estão chamando de antropoceno. Enfim, fico com Platão, ‘Errar é humano, mas também é humano perdoar. Perdoar é próprio de pessoas generosas’. Se esse perdão ao ser humano for impossível, sinto muito. A inteligência artificial, então, poderá derrotá-lo. E, com certeza, o planeta agradecerá.
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